HashtagBrega

Quem me conhece sabe muito bem que eu não sou daquelas pessoas que acham fácil listar qualidades pessoais. Se um transeunte qualquer me pedir pra fechar uma mão com coisas que eu sei fazer bem em apenas um minuto, provavelmente irei levar dez só levantando hipóteses e desistirei no meio da empreitada. Não é de Deus, não, ficar remexendo no que não se tem certeza! Porém, se há uma virtude da qual não duvido em mim mesma, é a de que eu sei ser brega. Sei ser assim, de ter nascido com isso, sabe? Coisa de dom mesmo. E ele é especialmente bom quando eu quero que seja. E hoje eu quero. Hoje eu quero muito.

Pois há três anos atrás eu escrevi este outro texto brega, ansiosa por realizar uma das maiores loucuras de amor que eu podia imaginar: largar tudo e cruzar o oceano para viver nos braços da minha amada Londres. Foi paixão instantânea quando nos vimos pela primeira vez, eu e a cidade. E após anos de idas e vindas, namoro à distância e muito chororô, eu decidi ir encontrá-la. E eu sabia que ia ser pra sempre. Eu tinha certeza de que seria simples assim.

Quando eu desembarquei aqui, em 2011, ainda assustada com o novo endereço no mundo, achei que a cidade me receberia de braços abertos mas, para meu espanto, ela logo deixou claro: você está aqui, nós nos amamos, mas…as coisas serão do meu jeito. E eu me peguei descobrindo que Londres tinha um temperamento e tanto! Não bastava eu estar ali, era preciso batalhar a relação. Era preciso provar, constantemente, o porquê da minha vinda.

Logo após o primeiro ano juntas, depois de uma série de provações que nem valem gastar toques numa folha pra contar, a cidade passou de musa idealizada à amante ciumenta e insegura. Desde o início - e para minha surpresa - ela fez o que podia para me dobrar e, na ânsia de me por em xeque, foi tirando tudo o que eu possuía: minha família e amigos do outro lado do mundo, minha profissão, minha estabilidade financeira, minha sanidade, meu namoro de quase uma década, minhas certezas e um bocado da identidade pela qual eu me reconhecia. 

Foi tanto de mim que ficou do lado de fora, que o espelho onde eu me mirava todo dia de manhã parecia, inevitavelmente, vazio. A pessoa refletida não era eu, mas também não era ninguém: um borrão no vidro. A cada coisa perdida, era como se ela me perguntasse, carente e fazendo pirraça, bem como uma namorada chantagista buscando infindáveis provas de amor: “E agora que isso aconteceu? Me ama mesmo? Depois disso, tu ainda me amas? Me prova. Me prova mais uma vez que tu não vais me deixar”. Eu respondi - todas as vezes - que sim, que a amava. Era impossível não amá-la. E que não, nunca pensei em ir embora. Como eu poderia deixá-la? Depois de tudo, como deixar um amor deste tamanho para trás?

Não demorou para eu ser questionada, por amigos e parentes, se a nossa relação realmente valia a pena. Eu assegurei a todo mundo que sim, valia cada segundo. Pois para o número de noites em que eu dormi chorando e senti o bafo quente da angústia arrepiar minha nuca, teve um outro bocado de dias de sol onde sorri para ninguém só por estar ali, onde eu sempre quis estar. E não é exatamente assim, num pra cima e pra baixo ululante, que a vida deve ser?

No texto do passado, eu aventei a hipótese de que o amor por uma cidade seria certamente o relacionamento mais saudável e duradouro que alguém poderia possuir. Coisa de moça jovem e deslumbrada. A verdade é que o tempo e o ferro que vai se acumulando nas juntas trazem essas certezas cada vez mais palpáveis e óbvias - e por isso mesmo, inevitavelmente bregas - de que qualquer relação que você desenvolve com o mundo, seja com pessoas, com suas posses, com o seu endereço no planeta, passam pela relação que você estebelece consigo mesmo. E descobri, atrasada: eu já tinha aberto mão da minha identidade muito antes de pisar em solo inglês.

Hoje, meu namoro com Londres é um desses amores maduros, que sabe das dificuldades de uma estrada construída a dois, do quão feia ela pode ser em alguns momentos. Daqueles amores que sabem da possibilidade do fim, mas também sabem que é ficando e não desistindo, que é possível se saber quando é o fim, de fato. Talvez a gente envelheça juntinhas com o tempo. Talvez esse mesmo tempo nos separe e nos mantenha boas amigas, dessas que uma ou duas vezes ao ano tomam café juntas para saber como vão as coisas e buscam reconhecer, uma na outra, traços do que uma vez foram. O essencial é que, depois de três anos, eu soube que um endereço no mundo é o menor dos problemas, quando se sabe quem se é. A gente demora, mas aprende.  O meu espelho nunca mais vai ficar vazio.

Comments
2 Responses to “HashtagBrega”
  1. E acaba com frase de efeito... adoro frase de efeito... "meu espelho nunca mais vai ficar vazio" TOMA!

  2. Quando lhe conheci - soube disso só agora, você tinha acabado de chegar em Londres. Legal saber um pouca mais sobre sua vida em um texto tão bem escrito. Que seu relacionamento continue sendo engrandecedor!!! :)

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