A-DORO: Federico Erra


















































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































HashtagBrega

Quem me conhece sabe muito bem que eu não sou daquelas pessoas que acham fácil listar qualidades pessoais. Se um transeunte qualquer me pedir pra fechar uma mão com coisas que eu sei fazer bem em apenas um minuto, provavelmente irei levar dez só levantando hipóteses e desistirei no meio da empreitada. Não é de Deus, não, ficar remexendo no que não se tem certeza! Porém, se há uma virtude da qual não duvido em mim mesma, é a de que eu sei ser brega. Sei ser assim, de ter nascido com isso, sabe? Coisa de dom mesmo. E ele é especialmente bom quando eu quero que seja. E hoje eu quero. Hoje eu quero muito.

Pois há três anos atrás eu escrevi este outro texto brega, ansiosa por realizar uma das maiores loucuras de amor que eu podia imaginar: largar tudo e cruzar o oceano para viver nos braços da minha amada Londres. Foi paixão instantânea quando nos vimos pela primeira vez, eu e a cidade. E após anos de idas e vindas, namoro à distância e muito chororô, eu decidi ir encontrá-la. E eu sabia que ia ser pra sempre. Eu tinha certeza de que seria simples assim.

Quando eu desembarquei aqui, em 2011, ainda assustada com o novo endereço no mundo, achei que a cidade me receberia de braços abertos mas, para meu espanto, ela logo deixou claro: você está aqui, nós nos amamos, mas…as coisas serão do meu jeito. E eu me peguei descobrindo que Londres tinha um temperamento e tanto! Não bastava eu estar ali, era preciso batalhar a relação. Era preciso provar, constantemente, o porquê da minha vinda.

Logo após o primeiro ano juntas, depois de uma série de provações que nem valem gastar toques numa folha pra contar, a cidade passou de musa idealizada à amante ciumenta e insegura. Desde o início - e para minha surpresa - ela fez o que podia para me dobrar e, na ânsia de me por em xeque, foi tirando tudo o que eu possuía: minha família e amigos do outro lado do mundo, minha profissão, minha estabilidade financeira, minha sanidade, meu namoro de quase uma década, minhas certezas e um bocado da identidade pela qual eu me reconhecia. 

Foi tanto de mim que ficou do lado de fora, que o espelho onde eu me mirava todo dia de manhã parecia, inevitavelmente, vazio. A pessoa refletida não era eu, mas também não era ninguém: um borrão no vidro. A cada coisa perdida, era como se ela me perguntasse, carente e fazendo pirraça, bem como uma namorada chantagista buscando infindáveis provas de amor: “E agora que isso aconteceu? Me ama mesmo? Depois disso, tu ainda me amas? Me prova. Me prova mais uma vez que tu não vais me deixar”. Eu respondi - todas as vezes - que sim, que a amava. Era impossível não amá-la. E que não, nunca pensei em ir embora. Como eu poderia deixá-la? Depois de tudo, como deixar um amor deste tamanho para trás?

Não demorou para eu ser questionada, por amigos e parentes, se a nossa relação realmente valia a pena. Eu assegurei a todo mundo que sim, valia cada segundo. Pois para o número de noites em que eu dormi chorando e senti o bafo quente da angústia arrepiar minha nuca, teve um outro bocado de dias de sol onde sorri para ninguém só por estar ali, onde eu sempre quis estar. E não é exatamente assim, num pra cima e pra baixo ululante, que a vida deve ser?

No texto do passado, eu aventei a hipótese de que o amor por uma cidade seria certamente o relacionamento mais saudável e duradouro que alguém poderia possuir. Coisa de moça jovem e deslumbrada. A verdade é que o tempo e o ferro que vai se acumulando nas juntas trazem essas certezas cada vez mais palpáveis e óbvias - e por isso mesmo, inevitavelmente bregas - de que qualquer relação que você desenvolve com o mundo, seja com pessoas, com suas posses, com o seu endereço no planeta, passam pela relação que você estebelece consigo mesmo. E descobri, atrasada: eu já tinha aberto mão da minha identidade muito antes de pisar em solo inglês.

Hoje, meu namoro com Londres é um desses amores maduros, que sabe das dificuldades de uma estrada construída a dois, do quão feia ela pode ser em alguns momentos. Daqueles amores que sabem da possibilidade do fim, mas também sabem que é ficando e não desistindo, que é possível se saber quando é o fim, de fato. Talvez a gente envelheça juntinhas com o tempo. Talvez esse mesmo tempo nos separe e nos mantenha boas amigas, dessas que uma ou duas vezes ao ano tomam café juntas para saber como vão as coisas e buscam reconhecer, uma na outra, traços do que uma vez foram. O essencial é que, depois de três anos, eu soube que um endereço no mundo é o menor dos problemas, quando se sabe quem se é. A gente demora, mas aprende.  O meu espelho nunca mais vai ficar vazio.

The Drowned Man: a beleza de um afogamento

Eu fui avisada uma, duas, três, dez vezes. Foram dez amigos e conhecidos, que em algum momento no último mês olharam fundo nos meus olhos e disseram: “você PRECISA assistir essa peça”. Eu não sou de regular idas ao teatro, todo mundo sabe. Mas o preço anunciado para assistir a última produção da companhia inglesa PunchDrunk - 50 libras (quase duzentos reais) – não era um valor que estava exatamente sobrando no meu bolso. As súplicas continuaram aparecendo, “você nunca vai ver nada igual”, me jurou uma amiga, produtora cultural. Eu cedi. Quem precisa de dinheiro para se alimentar mesmo? 


Anunciada como a maior e mais ambiciosa montagem da trupe, a peça The Drowned Man: a Hollywood fable me trouxe às portas de uma fábrica abandonada, ao lado da estação de Paddington, noroeste de Londres. Logo na entrada, uma máscara branca é entregue ao público, junto aos seguintes avisos: a máscara deve ser usada o tempo todo e não é permitido conversar com ninguém. Aos poucos, por meio de um elevador, os espectadores são deixados em pequenos grupos nos diferentes andares do prédio (são quatro, no total!), onde o ascensorista encoraja: “Bem vindo ao Temple Studios: não tenha medo de se perder das pessoas que vieram com você e nem de explorar...sozinho”. 

As portas se abrem, e um universo Lynchiano (livremente inspirado também no clássico alemão Woyzeck) se descortina: ali, um decadente estúdio cinematográfico estadounidense da década de 60 foi construído minuciosamente, com direito a cidades cenográficas completas, sets de filmagem com desertos, florestas e montanhas artificiais. A luz difusa, a trilha sonora que desorienta e a imensidão dos pavilhões logo fazem com que você se perca dos seus pares.


 Mascarado, o público passa a encontrar personagens vagando pelo cenário, os quais é encorajado a seguir caso simpatize com a história dele. Ou não: é possível se perder em um emaranhado de histórias entrecortadas. São dezenas deles, cada um com uma vida pulsando, cada um respirando uma verdade. Ora eu estava seguindo uma aspirante à atriz transtornada pelo álcool, correndo inconsolável por um pavilhão de areia que simulava um deserto, ora eu descia apressada as escadas de um corredor mal iluminado, atrás de uma loura nervosa, que raspava as mãos sujas de sangue nas paredes brancas: ela tinha acabado de matar o amante. Essas personagens se encontram em momentos de puro brilhantismo coreográfico, em uma sincronia quase que de ballet, para depois partirem para outros encontros ao longo do prédio.


No universo da Punchdrunk, cada pessoa terá a sua experiência única baseada exclusivamente nas escolhas visuais do próprio espectador. Ao escolher um personagem, se perde dezenas de outros. É possível abrir gavetas dos quartos, ler cartas e bilhetes deixados nas mesas, mexer nos álbuns de retratos destas pessoas:  um inacreditável e delicioso mundo montado em prol da desorientação, como se fosse um afogamento. Uma imersão teatral.

 Quando o final chega – após quase três horas naquela realidade fantástica – o desfecho não pode ser mais apoteótico, com cerca de 400 espectadores mascarados (antes espalhados aos poucos pelo prédio) reunidos em um só espaço, completamente atônitos, sem saber ou sem querer que aquele seja mesmo o fim. Para confirmar mesmo o desfecho, os próprios atores seguram as pessoas pelas mãos e as encaminham para fora do prédio. 


Nada que eu escreva irá explicar a experiência, que eu só posso exprimir como uma das mais memoráveis da minha vida. Nem tudo são flores, é verdade: há aqueles que saem insatisfeitos com a falta de uma narrativa única a ser vivenciada. Mas há aqueles que saem fascinados com a complexidade e beleza do jogo proposto. Eu fico com a segunda opção. E passo adiante a súplica: você PRECISA assistir essa peça. 

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As palavras


As palavras me escapam. Fogem como se brincassem de esconder, contornando os precipícios abertos pelas respostas, sem medo de serem encontradas, muito menos de caírem no abismo do esquecimento. Elas sabem que são necessárias e que eu as procuro insistentemente, em uma brincadeira que por tantas vezes me deixou exausta, outras tantas a ver navios - destes que zarpam assim, com um batalhão de palavras - justo aquelas que tanto eu queria pronunciar - e que parecem fugir só pelo simples prazer de plantar em mim o desespero.

Eu já me vejo gritando ao longe, na beira do cais, pedindo para que voltem, que voltem para me dar sentido, que voltem para me dar explicações. Não há explicação sem palavras. E elas, danadas, me abanam rindo, jogam beijos no horizonte e somem, sem avisar quando retornam para preencher meu vocabulário. E como me dói ficar sem palavras. Gosto de colecioná-las aos montes e, quando uma me escapa, eu sei que é a punição pelo tempo que as deixei trancafiadas, pelo tempo demasiado com que as poupei, ao ignorar que palavras foram feitas para serem escritas ou ditas e - mimadas como são! - basta um pequeno deslize, o esquecimento de uma delas em alguma gaveta do tempo, e elas escapam sem piedade, em busca de alguém que as empregue sem medo. Que as empreguem em vão ou não.

 Inconsequentes como quem não sabe ouvir um "não", às palavras pouco importa se são usadas para ferir ou para agradar, para praguejar ou adorar a vida. Elas querem transbordar ao tempo frenético dos ponteiros, apenas pelo prazer de se verem escritas, de se ouvirem pronunciadas num sopro em qualquer direção - e vejam, competem entre si! - para ver quem é utilizada mais vezes. E eu, ora, eu sei que não fui o melhor reservatório de palavras. E eu sei que as poupei em demasia, eu sei que engoli o que podia, e que guardei respostas demais em mim. Pois foi longo o tempo em que tive a certeza de que o ar da minha fala era vento fraco demais para afastar tamanho temporal.

Arte é o que você quiser

Há alguns anos atrás, quando um jornalista perguntou a razão pela qual a obra My bedinstalação que trazia sua cama desfeita, coberta de objetos como remédios, calcinhas usadas, camisinhas e drogas espalhadas ao redor do móvel - era considerada uma obra de arte, e se a cama do próprio entrevistador também poderia ser arte, a artista Tracey Emin retornou a provocação: "A sua não é arte porque você nunca disse que era ou sentiu que fosse. Eu vi minha cama como uma obra de arte e senti que realmente era. Eu disse que era e a mostrei como tal. Eu transferi o que senti a respeito para os outros admirarem. Esta é a alquimia, a mágica. Eu sou a pessoa que tem de estar convicta do que é arte em primeiro lugar".



Tracey Emin é considerada um "tesouro nacional inglês", um dos maiores nomes da arte britânica e membro do "Young British Artists", grupo formado no final da década de 80, do qual o polêmico Damien Hirst também fazia parte.  E chegou a este posto ilustre valendo-se da própria vida como objeto de criação. Fazendo das tragédias pessoais, dos amores e da própria intimidade - um espetáculo para ser apreciado como obra, aberta a visitações para o público que ousar entrar em seu universo.

Visceral, sexual e muitas vezes desconcertante, Tracy ganhou uma das maiores - se não a maior - exposição restrospectiva de seu trabalho até o presente momento, em cartaz até 29 de agosto, na Hayward Gallery. Sob o título de "Love is what you want", a mostra traz dezenas de peças, que tecem uma narrativa da existência (desajustada) de Emin. Da vida na pequena cidade de Margate, ao estupro que sofreu aos 13 anos de idade. Dos amores fracassados ao aborto que fez aos 18 anos, da família de origem Turca, à solidão e o passar dos anos - a artista tira todos os esqueletos do armário. Como ela mesma diz, em busca de um entendimento de tudo. 





Na exposição, há as séries de cobertores com aplicações de retalhos que formam frases catárticas - tais como "I do not expect to be a mother, but I do expect to die alone" - seguida das famosas séries de néons, além de instalações, vídeo-artes, textos narrativos escritos à mão e algumas obras de gosto duvidoso, como  as caixas de acrílico que guardam absorventes internos, com o que creio ser sangue envelhecido.  A artista parece determinada a oferecer ao público a experiência de estar na pele de Tracey Emin. Não há barreira entre espectador e criador, a arte está no cotidiano, e é o que você quiser que seja. Existe a máxima que defende que "arte é para ser sentida e não compreendida" e, nesta exposição, ao público só é dada esta alternativa. Vale conferir.



Tracey Emin: Love is what you want (http://www.loveiswhatyouwant.com/)
Aberta todos os dias, das 10h às 17h
Em cartaz na Hayward Gallery (Southbank Centre, Belverdere Road, London SE1 8XT) até o dia 29 de agosto.
Ingresso: 12 libras.




A-DORO: Federico Erra

Eu gosto muito de fotografias-retratos. Quando bem feitas, toda uma história se descortina através de um olhar, um gesto, uma pose. O trabalho do italiano Federico Erra é assim: cheio de coisas pra contar, impressionante e pra lá de inspirado, criando uma atmosfera muito autoral. O  jogo entre luz e  contraste confere uma dramaticidade e peso lindos aos corpos e rostos e não é difícil perceber a razão pela qual Federico anda assinando dezenas de editoriais de moda mundo afora. Para ver mais dos retratos fantásticos de Erra, o flickr dele está aqui.