The Drowned Man: a beleza de um afogamento

Eu fui avisada uma, duas, três, dez vezes. Foram dez amigos e conhecidos, que em algum momento no último mês olharam fundo nos meus olhos e disseram: “você PRECISA assistir essa peça”. Eu não sou de regular idas ao teatro, todo mundo sabe. Mas o preço anunciado para assistir a última produção da companhia inglesa PunchDrunk - 50 libras (quase duzentos reais) – não era um valor que estava exatamente sobrando no meu bolso. As súplicas continuaram aparecendo, “você nunca vai ver nada igual”, me jurou uma amiga, produtora cultural. Eu cedi. Quem precisa de dinheiro para se alimentar mesmo? 


Anunciada como a maior e mais ambiciosa montagem da trupe, a peça The Drowned Man: a Hollywood fable me trouxe às portas de uma fábrica abandonada, ao lado da estação de Paddington, noroeste de Londres. Logo na entrada, uma máscara branca é entregue ao público, junto aos seguintes avisos: a máscara deve ser usada o tempo todo e não é permitido conversar com ninguém. Aos poucos, por meio de um elevador, os espectadores são deixados em pequenos grupos nos diferentes andares do prédio (são quatro, no total!), onde o ascensorista encoraja: “Bem vindo ao Temple Studios: não tenha medo de se perder das pessoas que vieram com você e nem de explorar...sozinho”. 

As portas se abrem, e um universo Lynchiano (livremente inspirado também no clássico alemão Woyzeck) se descortina: ali, um decadente estúdio cinematográfico estadounidense da década de 60 foi construído minuciosamente, com direito a cidades cenográficas completas, sets de filmagem com desertos, florestas e montanhas artificiais. A luz difusa, a trilha sonora que desorienta e a imensidão dos pavilhões logo fazem com que você se perca dos seus pares.


 Mascarado, o público passa a encontrar personagens vagando pelo cenário, os quais é encorajado a seguir caso simpatize com a história dele. Ou não: é possível se perder em um emaranhado de histórias entrecortadas. São dezenas deles, cada um com uma vida pulsando, cada um respirando uma verdade. Ora eu estava seguindo uma aspirante à atriz transtornada pelo álcool, correndo inconsolável por um pavilhão de areia que simulava um deserto, ora eu descia apressada as escadas de um corredor mal iluminado, atrás de uma loura nervosa, que raspava as mãos sujas de sangue nas paredes brancas: ela tinha acabado de matar o amante. Essas personagens se encontram em momentos de puro brilhantismo coreográfico, em uma sincronia quase que de ballet, para depois partirem para outros encontros ao longo do prédio.


No universo da Punchdrunk, cada pessoa terá a sua experiência única baseada exclusivamente nas escolhas visuais do próprio espectador. Ao escolher um personagem, se perde dezenas de outros. É possível abrir gavetas dos quartos, ler cartas e bilhetes deixados nas mesas, mexer nos álbuns de retratos destas pessoas:  um inacreditável e delicioso mundo montado em prol da desorientação, como se fosse um afogamento. Uma imersão teatral.

 Quando o final chega – após quase três horas naquela realidade fantástica – o desfecho não pode ser mais apoteótico, com cerca de 400 espectadores mascarados (antes espalhados aos poucos pelo prédio) reunidos em um só espaço, completamente atônitos, sem saber ou sem querer que aquele seja mesmo o fim. Para confirmar mesmo o desfecho, os próprios atores seguram as pessoas pelas mãos e as encaminham para fora do prédio. 


Nada que eu escreva irá explicar a experiência, que eu só posso exprimir como uma das mais memoráveis da minha vida. Nem tudo são flores, é verdade: há aqueles que saem insatisfeitos com a falta de uma narrativa única a ser vivenciada. Mas há aqueles que saem fascinados com a complexidade e beleza do jogo proposto. Eu fico com a segunda opção. E passo adiante a súplica: você PRECISA assistir essa peça. 

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